A História da Ciência tem se dedicado a demonstrar como o conhecimento é construído dentro de uma coletividade, ainda que de uma forma não coordenada e, frequentemente, perpassando várias gerações. O mito do cientista trabalhando como um herói solitário continua, porém, prevalecendo em divulgações populares e mesmo no ensino e até no meio universitário. Um dos exemplos dessa deformação sistemática na apresentação histórica envolve uma das maiores conquistas científicas, que é a formulação da Tabela Periódica dos elementos químicos e que na verdade continua sendo elaborada à luz da complexidade resultante dos isótopos e dos elementos transurânicos. O número 15 da Khronos abre com o artigo de Rodrigo Gomes e Joanez Aires, que apresentam alguns dos cientistas que se destacaram para desenvolver esse contexto da periodicidade dos elementos na História da Química, bem como as controvérsias que surgiram nos seus trabalhos. Os autores se baseiam nas ideias de “estilo de pensamento” propostas por Ludwik Fleck para desconstruir mitos e trabalhar uma noção mais realista com estudantes do nível médio de como se desenvolve a ciência.
A recepção da medicina muçulmana na Europa a partir da Idade Média tem sido objeto de estudo cada vez mais amplo. Marina Juliana Soares analisa o caso do famoso “bálsamo de Gileade”, que foi tema de um panfleto escrito pelo inglês John Cartwright no século XVIII. Esse autor se defrontou com as falsificações e a dificuldade de conhecer a composição mais exata de um remédio popular que era tido como uma panaceia para várias doenças, confrontando os conhecimentos em voga na Inglaterra com os saberes nas regiões do Império Otomano, onde ainda se cultivava a planta de onde era extraído o bálsamo.
A construção e uso de instrumentos é um campo bastante vasto da cultura material estudada pela História da Ciência e da Técnica. José Adolfo de Campos realizou uma pesquisa que resgata, como num emocionante trabalho de detetive, as origens daquele que era considerado o “primeiro e único telescópio com acompanhamento construído no Brasil”. Ao desvendar que o telescópio equatorial “Pazos” foi na verdade construído na Inglaterra em 1880, não sendo, portanto, de fabricação brasileira, o autor aponta outra descoberta resultante de sua pesquisa, talvez mais importante. É que na década de 1860 as “Oficinas de Ótica e de Instrumentos Científicos” de José Ermida Pazos no Rio de Janeiro tinham competências técnicas surpreendentes para a época num país sem tradição reconhecida na construção de equipamentos ópticos mais sofisticados. É mais um exemplo do que temos visto em áreas inesperadas, como por exemplo, nas oficinas ferroviárias brasileiras do século XIX, onde artesãos conseguiam produzir substitutos e melhorias de material que teria de ser importado, graças à capacidade de inovar ao observar e copiar originais. Pena que não houvesse uma política de apoio para a ciência e a técnica que pudesse alavancar o desenvolvimento nacional, deficiência que se tornou crônica no país, e responsável por significativos surtos, mas sem uma amplitude consolidada nacionalmente.
O “despotismo esclarecido” da era pombalina teve o condão de mexer nas estruturas econômicas portuguesas e criar a oportunidade de uma atualização no ensino, atualizando o conhecimento científico. Uma de suas facetas foi a vinda para Coimbra na segunda metade do século XVIII do italiano Domenico Vandelli, que unia o cultivo da história natural com o estudo de economia. Ricardo Dalla Costa, numa bem-vinda aproximação entre a história da ciência e a história da economia (sem deixarmos de considerar que a economia é uma ciência em si), nos apresenta este último lado de Vandelli, menos conhecido do que o primeiro, onde se filiou ao utilitarismo e à concepção fisiocrata, de que as riquezas provêm da exploração da terra (agricultura, silvicultura, pecuária, minas). Esta visão o aproximou da tendência que, apesar dos esforços de dirigismo colbertiano de Pombal, acabaria dominando a economia portuguesa, já formatada desde o Tratado de Methuen e desfavorável à industrialização de Portugal. Os reflexos desta orientação na colônia brasileira são conhecidos e só parcialmente modificados com a vinda do ministro Rodrigo de Sousa Coutinho para o Brasil junto com a família real. A contracorrente onde se insere Vandelli acaba mais uma vez triunfando com as orientações de seu discípulo, o Visconde de Cairu, adepto das teorias econômicas liberais de Adam Smith - e no Brasil a visão de uma vocação fundamentalmente agrária ainda teria um longo futuro.
A “novela gótica” exemplificada por Mary Shelley em seu Frankenstein , tem motivado um grande número de trabalhos interpretativos, passando pela psicanálise, pelo crescimento da divulgação científica na Grã-Bretanha do século XIX, pelos ângulos do feminismo, do debate “nature” versus “nurture” e muitos outros, mantendo aceso o interesse acadêmico por esta obra singular e de grande popularidade. Rosângela Pertile em seu artigo enfoca o tema do “outro”, aquele que é segregado pelas classes dominantes e integra a imagem do “monstro” que ameaça as elites, consideradas as principais beneficiárias dos avanços científicos e técnicos. Na seção de Memória, Oscar Matsuura tece uma merecida homenagem a Paulo Marques dos Santos, abnegado pesquisador cuja trajetória se mescla com a do Instituto de Astronomia e Geofísica (a que depois foi acrescentado “Ciências Atmosféricas”) da Universidade de São Paulo. Começando como técnico e depois se titulando academicamente, Paulo Marques esteve à frente das atividades da estação de meteorologia, antes e depois que o Instituto fosse incorporado à Universidade, mas também realizou pesquisas em física solar e radioastronomia. Viveu de perto as agruras e crises causadas pelas interferências políticas externas e internas na organização e no funcionamento da instituição, à qual se dedicou também em termos de organizar por conta própria a memória do IAG em arquivos. Não deixou de ir diariamente à sua sala na Água Funda, mesmo muitos anos depois da aposentadoria. Lá fui conhecê-lo, onde recebeu a mim e a um historiador norte-americano interessado na história comparada de observatórios meteorológicos.
Chikara Sasaki foi um influente historiador japonês da ciência, tendo sido editor da revista Historia Scientiarum. Esteve algumas vezes no Brasil, a convite do Centro de História da Ciência da Universidade de São Paulo, dirigido então por Shozo Motoyama. Foi também por iniciativa deste que foi aqui publicado em 2010 seu livro Introdução à Teoria da Ciência. Infelizmente este livro, que apresenta uma visão original da história da ciência, e que discute interessantes comparações entre o Ocidente e Oriente, foi muito pouco divulgado e lido entre nós. A resenha de Guilherme Sedlacek que fecha esta edição cobre esta lacuna, discutindo vários aspectos do livro, onde sobressaem os conceitos de ciência e tecnologia e seus contrastes. Bem como sua interface com a sociedade.
Desejamos que estas leituras tragam conhecimento e prazer.
Gildo Magalhães
Editor
Leia na íntegra: https://www.revistas.usp.br/khronos/issue/view/12970/2611