A propósito das traduções em História da Ciência e da Técnicacartaz

Apesar de um número crescente de nossos leitores conseguirem ler artigos em outra língua além do português, ainda há barreiras para um entendimento mais completo se não houver uma boa tradução. Os programas de pós-graduação têm contribuído para que esforços sejam dispendidos para a leitura pelo menos em inglês, mas na prática das aulas de graduação e pós-graduação pode-se verificar que apenas uma parte do conteúdo naquele idioma é assimilável pela maioria dos alunos.

Por outro lado, as editoras comerciais pouco investem neste campo. Quando o fazem, muitas vezes não se apercebem de que certas obras são da área de história da ciência e da técnica, e que há um mercado não desprezível para isso, mesmo quando as edições rapidamente se esgotam, como aconteceu por exemplo com Galileu Herético, de Pietro Redondi, ou Histórias de Autômatos, de Mario Losano. Creio que esta deficiência é, pelo menos em parte, devida à baixa institucionalização da História da Ciência e da Técnica em nosso meio acadêmico. De fato, poucas vezes se encontra esta disciplina nas grades formativas da graduação em História ou em outros cursos no Brasil.

Há também a considerar a escassez de traduções dos clássicos da ciência. Algumas editoras universitárias, como as da UNESP e da UNICAMP, têm contribuído para preencher esta lacuna. Temos um punhado de obras consagradas e cuja tradução ainda é relativamente recente, como Os Elementos, de Euclides, ou O Mundo/O Homem, de Descartes, e História Natural, de Buffon. Mas há muitas outras obras a traduzir, cujo conhecimento ainda é capaz de provocar reflexões ricas e inclusivamente de interesse científico atual ( o que aparentemente soa paradoxal), como as de Hierão de Alexandria, Plínio, o Velho, Bernard Palissy, Agostino Ramelli, Leibniz, Bernhardt Riemann, Georg Cantor, Charles Lyell, James Clark Maxwell, Robert Boyle, Laplace, Hans Driesch, Louis de Broglie e tantos outros representantes da física, matemática, geologia, biologia, medicina e outras ciências, bem como das diversas técnicas. São leituras proveitosas dentro da tradição ocidental das ciências e de sua historiografia, mas certamente esta lista já vem sendo ampliada com traduções para o inglês (principalmente) de contribuições islâmicas, chinesas e outras.

Além de textos científicos e técnicos, a partir do século XX consolidou-se na Europa e na América do Norte (e posteriormente na Rússia, no Japão e outros países asiáticos, bem como na Austrália) uma nova dimensão de historiadores dedicados à História da Ciência e da Técnica, com ramificações pela Filosofia, Antropologia e Sociologia. A produção desse conhecimento chegou apenas em pequenas doses de traduções ao Brasil, envolvendo trabalhos principalmente de Alexandre Koyré, Karl Popper, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, devido ao seu maior apelo para um público não especializado. Merece ainda menção a coleção em 14 volumes da História Geral das Ciências, dirigida por René Taton, de caráter ao mesmo tempo enciclopédico e problematizante.

Foi preciso um empenho de acadêmicos universitários para a tradução de outros autores igualmente importantes, mas que não despertaram interesse nas editoras convencionais. Surgiram assim as coletâneas organizadas por Ruy Gama, História da Técnica e da Tecnologia (textos básicos) , com trabalhos fundamentais de Marc Bloch, Bertrand Gille, Lynn White Jr., Dirk van Struik, seguido por Ciência e Técnica (antologia de textos históricos), que inclui obras notáveis de Boris Hessen e William Barclay Parsons.

Na década de 1980 houve contribuições muito relevantes feitas pelo CLE – Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, da UNICAMP, que nos Cadernos de História e Filosofia da Ciência apresentou traduções na íntegra de A cultura de Weimar, a Causalidade e a Teoria Quântica, 1918-1927, trabalho seminal de Paul Forman, Tratados Físicos, de Blaise Pascal, Tratado sobre a Luz, de Christiaan Huygens, e Salvar os Fenômenos, de Pierre Duhem. Essa revista trouxe também textos importantes de Hans Christian Oersted, Julius Robert Mayer e outros cientistas, bem como de historiadores e filósofos da ciência.

Com o crescente interesse público e de alunos pela História da Ciência e da Técnica, uma opção de acessibilidade a textos estrangeiros para alguns foi a ação muito mais dinâmica das editoras espanholas e portuguesas. Neste último caso, foi notável a “Colecção História e Filosofia da Ciência”, a cargo do Centro de História das Ciências da Universidade de Lisboa. Esta instituição traduziu livros de conhecidos historiadores como Helge Kragh, Richard Westfall, George Basalla, Edward Grant, Thomas Hankins, Allen Debus, John Hedley Brooke, Mario Biagioli, Yves Gingras e Kostas Gavroglu. Já obras em outras línguas, como francês, italiano ou alemão, tiveram escassos leitores no Brasil.

Como referido antes, a historiografia das ciências e técnicas no Brasil é pobre. Depois de 1950, data em que se começou a se intensificar internacionalmente sua produção, tem sido raramente objeto de interesse por parte das editoras brasileiras, especialmente as visões menos ortodoxas neste campo. Algumas exceções relevantes confirmam a regra, como De Arquimesdes a Einstein. A face oculta da invenção científica, de Pierre Thuillier, Os filósofos e as Máquinas, de Paolo Rossi, A invenção das coisas úteis, de Harry Petroski, A história química de uma vela, de Micahel Faraday, Das tripas coração, de Roy Porter. Em alguns casos há a surpresa de pequenas editoras apostarem em livros menos conhecidos, como História da Filosofia Natural. Do Mundo Antigo ao Século XIX, de Edward Grant, História das Invenções, de Trevor Williams, ou Terra plana, Galileu na prisão, e outros mitos sobre ciência e religião, de Ronald Numbers (org.).

Naturalmente, não se advoga que tudo seja traduzido. Afinal, só a revista Isis publica anualmente resenhas ensaísticas de centenas de livros de História das Ciências e Técnicas, e sua edição anual da produção no campo, a Current Bibliography, lista milhares de obras em uso nos principais países que dedicam atenção a tais assuntos. Há, contudo, uma quantidade de obras que, apesar de terem já alguns decênios, são de interesse permanente, pouco disponíveis nas bibliotecas e dificilmente obteníveis, legalmente ou não, nos pdfs eletrônicos. Refiro-me a trabalhos como Roots of Scientific Thought. A Cultural Perspective, de Philip Wiener e Aaron Noland (eds.), Scientific Change. Historical Studies in the intellectual, social and technical conditions for scientific discovery and technical invention, from antiquity to the present, de A.C. Crombie (ed.), Changing Perspectives in the History of Science, de Mikulás Teich e Robert Young (eds.), On the Threshold of Exact Science. Selected Writings on Late Medieval Natural Philosophy, de Anneliese Meyer, Technik. Eine Geschichte ihrer Probleme, de Friedrich Klemm, Histoire de la Science, de Maurice Daumas (ed.), ou os vários estudos fundacionais de George Sarton, que vão desde Ancient Science through the Golden Age of Greece até History of Science and the new Humanism. Livros como estes deveriam fazer parte das bibliotecas disponíveis para os estudiosos e profissionais de História da Ciência e da Técnica e mesmo dos leitores cultos em geral.

Esta revista tem envidado alguns esforços, ainda que modestos, para contribuir com o esforço da tradução de textos, como ocorreu desde o seu primeiro número. Assim foram traduzidos os textos “Sobre o problema da verdade e da compreensão em ciência”, de David Bohm (Khronos nº 1), “O mito do referencial”, de Karl Popper (Khronos nº 1), “O Pensamento Científico como Fenômeno Planetário”, de Vladimir Vernadsky (Khronos nº 4), “Tentativa de uma teoria da fricção dos fluidos”, de Leonhard Euler (Khronos nº 5), “As raízes sociais da ciência”, de Edgar Zilsel (Khronos nº 6), “Carta sobre as erupções do monte Vesúvio”, de George Berkeley (Khronos nº 9), “Calendários com exibição de Olimpíadas e previsão de eclipses no mecanismo de Anticítera”, de Tony Freeth et al. (Khronos nº 10), “Data final do Mecanismo de Anticítera”, de Christián Carman (Khronos nº 12).

As considerações anteriores servem como introito para a apresentação desta 14ª edição de Khronos que, em continuidade às preocupações descritas, traz aos leitores uma nova série de traduções. Isto está evidenciado na escolha da capa, relembrando o papel fundamental dos tradutores e comentadores islâmicos, que ajudaram a preservar e expandir o conhecimento científico grego antigo.

Inicialmente, em “Sobre o Estilo na História Intelectual”, o conhecido historiador da ciência norte-americano Lewis Pyenson propõe o reconhecimento das diferenças intrínsecas de motivação e metodologia para a Filosofia e a História. Em críticas argutas sobre o estruturalismo de Hayden White, Pyenson discorre sobre sua proposta de uma ferramenta intitulada “complementaridade histórica”, em que se consideram duas áreas distintas de atuação, buscando se há relacionamentos mútuos que melhor expliquem desenvolvimentos sociais, culturais e econômicos de uma dada época. Como exercício de aplicação da complementaridade histórica, elege elementos da pintura argentina contemporânea e da teoria do caos. Para acentuar as diferenças de enfoque entre Filosofia e História, o autor aborda e diferencia criticamente as obras de Ortega y Gasset, Reinhard Koselleck e Thomas Kuhn, acentuadas pelos contrastes entre Modernidade e Pós-modernidade, aprofundando uma discussão iniciada pelo historiador da ciência Paul Forman e valendo-se de interpretações de alguns conhecidos historiadores da arte. Seu longo ensaio termina com uma provocativa alusão à pertinência do amor para os historiadores.

De José Antonio de Freitas Sestelo e Jael Glauce da Fonseca temos a “Visão dos localistas sobre a cólera no século XIX: tradução do Comunicado do Conselho de Saúde do Reino da Baviera publicado em 1873”. Trata-se de um documento traduzido do alemão, expondo medidas consideradas úteis na profilaxia do cólera, por ocasião de um dos muitos surtos da doença na Europa e em outros continentes na segunda metade do século XIX. Os autores comentam o documento traduzido, que revela uma controvérsia muito viva na época, entre os que defendiam uma origem da moléstia localizada, como o faz o autor do Comunicado, e os que propunham uma visão baseada na teoria do contágio. Para os autores, o desconhecimento da etiologia microbiana do cólera (o vibrião seria descoberto mais tarde, em 1883-84, pela equipe de Robert Koch) não desqualifica o manifesto bávaro, uma vez que sua base humanista recomendava preceitos localistas que acabaram sendo incorporados posteriormente na Medicina Social, numa abordagem multicausal de epidemiologia.

George Berkeley publicou em 1744 Siris, um tratado medicinal sobre a água de alcatrão, no qual expõe sua visão metafísica sobre a famosa “cadeia do ser” aristotélica. Jaimir Conte fez a tradução dessa obra em conjunto com outra do mesmo autor (George Berkeley: Alciphron/Siris. São Paulo: Editora da UNESP, 2022). Como a obra de Berkeley fez sucesso e foi traduzida em outros países europeus, Conte nos apresenta em especial o “Prefácio à tradução francesa de Siris, de 1745”, que contém um bom resumo do original e uma defesa contra o pirronismo da época.

Completando esta edição temos algumas seleções de textos. Bernardo Ternus de Abreu, Rosemari Lorenz Martins e Caio Francisco Ternus de Abreu discutem o avanço no albor do século XVIII sobre o entendimento e tratamento do câncer. Em “De enfermidade sistêmica à enfermidade local: análise do estudo sobre a gênese dos tumores na obra de Claude Gendron (1701)”, eles mostram que esse importante médico francês se distanciou da tradição hipocrática-galênica dos humores corporais, sem no entanto dela se divorciar completamente. Aprofundando a compreensão da importância do sistema linfático no espalhamento do câncer, Gendron avançou no tratamento cirúrgico de alguns tipos de câncer. Os autores ressaltam que esses avanços científicos podem ser vistos não como súbitos cortes epistemológicos e sim como mantendo uma certa continuidade com os conhecimentos da época, em que o novo se junta ao existente num processo relativamente lento.

De Aline Pereira temos o artigo “A Companhia Geral de Eletricidade: da necessidade de geração de energia elétrica aos desafios enfrentados por pequenas concessionárias do setor energético”. Trata-se esta empresa de uma das muitas fornecedoras de eletricidade em nível local ou regional, criadas no Estado de São Paulo nos primeiros decênios do século XX. Essa companhia de 1939 foi pouco estudada e no presente texto mostra-se sua incapacidade de atender a demanda da
região servida e as dificuldades empresariais enfrentadas, como de resto aconteceu com outras na história da eletrificação paulista.

Hamilton Almeida é um destacado jornalista que na década de 1970 tomou a si a tarefa de estudar a vida de Roberto Landell de Moura, padre e físico experimental gaúcho, que no final do século XIX fez transmissões pioneiras de rádio sem fio em São Paulo, e cuja vida resultou em uma biografia – cf. Hamilton de Almeida, Padre Landell de Moura, um Herói sem Glória (Rio de Janeiro: Record, 2006). Padre Landell ofereceu sem êxito sua invenção ao governo brasileiro. Como é conhecido, o Brasil nunca se engajou em políticas de ciência e tecnologia de forma sustentável e, após a recusa e sem apoio para financiar seus experimentos, Landell de Moura foi morar nos EUA, onde patenteou suas invenções. Hamilton Almeida fez novas pesquisas com base nessas patentes, de que resultou o texto que fecha esta edição, “Padre Landell: o autor das primeiras transmissões de voz e música por ondas de rádio do mundo”.

Desejo aos leitores que estes acontecimentos do passado possam inspirar o desejo de conhecer mais da história da ciência e da técnica, e que os textos aqui
reunidos ensejem uma leitura agradável.

Gildo Magalhães
Editor

Leia na íntegra: https://www.revistas.usp.br/khronos/issue/view/12768/2504