Os textos que integram o número 13 da revista Khronos, do Centro de História da Ciência, da Universidade de São Paulo, são bastante variados e se iniciam com o resultado de pesquisas cuidadosas de Fernando Landgraf e Pau- lo Araújo sobre o ferro produzido na famosa Fábrica de Ferro de Ipanema no século XIX. Localizada em Iperó, no interior do Estado de São Paulo, essa fábrica tem um lugar destacado na história da técnica no Brasil, pois que nela trabalharam Varnhagen e outros pioneiros da siderurgia nacional. O patrimô- nio histórico considerável das instalações não recebeu, todavia, a preservação merecida. Felizmente trabalhos como o que apresentamos, que empregou re- cursos modernos de arqueometalurgia e espectroscopia com microscópio de varredura eletrônica, permitem estudar aspectos técnicos que revelam detalhes da memória da ciência e da técnica, cujos conhecimentos se perderam na incú- ria do desleixo com a preservação da história. Realiza-se assim a recomendação de Pierre Thuillier (em De Arquimedes a Einstein): “Parece, finalmente, que os historiadores da ciência não devem hesitar, em alguns casos, em se transfor- mar, eles mesmos, em experimentadores (e então a ajuda dos próprios cientis- tas lhes será altamente aconselhável)” – os resultados são, como no presente caso, ricos e despertam novas questões.

Acredito que as invenções não têm uma paternidade absolutamente atribuível e verificável, pois o que se costuma chamar de inventor geralmente é alguém que melhorou de forma decisiva aquilo que outros antes produziram ao longo de várias gerações, por vezes perfazendo uma longa duração, acrescen- tando de pouco em pouco vários aperfeiçoamentos. Assim, a história da ciên- cia não pode colocar Galileu como o inventor do telescópio, mas sim como a pessoa que colocou em relevância o instrumento que lhe deu notoriedade. Da mesma forma, Newton promoveu o telescópio refletor anos depois das obser- vações de Galileu com seu telescópio de refração. Rafael Dall’Olio retoma es- ses desenvolvimentos, acrescentando o papel fundamental e muitas vezes su- bestimado de Kepler com seu tratado de óptica, que permitiu estudar as lentes, abrindo caminho para os aperfeiçoamentos seguintes aos instrumentos dos citados protagonistas.

Apesar da ampla literatura que trata da presença dos jesuítas nas colô- nias portuguesas, é pouco conhecida sua atuação na cura de ferimentos e do- enças. Embora não fosse médico, José de Anchieta viu-se levado a usar de seus conhecimentos terapêuticos gerais para tratar de portugueses e índios ao chegar na capitania de São Vicente. Edson Pereira narra como os inacianos improvisaram os tratamentos de doenças diversas, inclusive a forte epidemia de varíola na metade do século XVI, apelando até para procedimentos como a sangria, que na época levantava dúvidas de origem religiosa. Socorrendo-se também de informações de plantas e substâncias usadas pelos indígenas, o rela- tivo sucesso dos jesuítas foi um fator que contribuiu para a causa missionária.

Quase dois séculos depois, algo semelhante ocorreria com o jesuíta Afonso da Costa em Goa, como relata o aprofundado texto de Vitória Mar- chetto. Trazendo em sua formação as bases das teorias europeias de fundo hipocrático-galênico em uso no início do século XVIII, os jesuítas aportavam também uma bagagem de conhecimentos adquiridos nas colônias portuguesas da África e do Brasil, e Afonso da Costa não hesitou em incorporar a estes alguns elementos indianos contidos na tradição milenar do ayurveda, e a efetivi- dade dos seus procedimentos médico-farmacêuticos ampliou o alcance de sua ação religiosa, como acontecera com Anchieta no Brasil. A autora examina o receituário contido na obra Árvore da vida, de Costa, propondo que a divulgação de conhecimentos ultramarinos influenciou a ciência europeia, tornando mais complexa a questão de difusão dos conhecimentos.

O mecanicismo foi lentamente elaborado em paralelo com a progressi- va matematização da natureza, principalmente após os trabalhos de Galileu, Descartes e Gassendi no século XVII. A aplicação de ideias de mecanismo para além da física invadiu a química e aquilo que se tornou mais tarde a biolo- gia, o que não causa surpresa pois eram todas pertencentes à filosofia natural. No entanto, a extensão aos seres vivos sempre foi problemática, estando ainda hoje em disputa. No século XVIII, as ponderações de Leibniz a esse respeito ressoavam ainda fortemente, como seria também o caso das ideias posteriores de Kant. A história da embriologia registra como as concepções de geração e desenvolvimento de novos seres vivos dependiam de se adotar ou não uma filiação mecanicista. As exibições dos autômatos do célebre Vaucanson faziam sucesso exatamente porque simulavam corpos vivos, graças ao progresso atin- gido pelos mecanismos. Simone Guimarães e Maria Elice de Brzezinski Prestes apresentam em seu texto uma apreciação da obra de Julien de La Mettrie, O homem-máquina, que endossa a visão mecanicista na França iluminista, e procura problematizar o reducionismo de sua proposta.

A posição de Charles Darwin com relação ao racismo tem sido objeto de polêmicas. Por um lado, em sua obra A origem do homem e a seleção sexual, al- guns apontam uma ideologia racista do autor, que apela para a suposta superio- ridade do homem branco, em relação aos povos colonizados pela coroa britâ- nica. Por outro lado, Darwin registrou em seus diários na viagem com o navio Beagle o que presenciou no Brasil, ou seja, vários episódios de negros escravi- zados sendo maltratados com uma certa naturalidade pelos seus senhores. Este é o tema do artigo de Marcos Josephino, que relata como tais cenas horroriza- ram Darwin, mas que apesar de testemunha da crueldade dos senhores, não o levaram a se engajar em prol do abolicionismo, depois de sua volta à Inglaterra.

Finalizando a edição temos um ensaio sobre como usar o computador para discutir um problema milenar da história e filosofia da matemática: a ma- temática está em tudo? As contribuições essenciais do século XX sobre fractais e teoria do caos mostraram que sob a aparência da desordem podem surgir ordem e complexidade. Paulo Castro, do Centro de Filosofia da Ciência da Universidade de Lisboa, propõe o uso pedagógico de programas de computa- dor facilmente acessíveis com a finalidade de levar os estudantes a refletir sobre temas dessa natureza.

Os trabalhos incluídos na presente edição ilustram a importância da história da ciência para uma melhor compreensão do processo evolutivo do conhecimento humano, assim como a valorização da ciência é um imperativo para vencer o desnível material e cultural de uma nação, fatores que costumam ser relegados pelos políticos, até mesmo em momentos de eleições, mas prin- cipalmente na prática de seus mandatos.

Desejamos aos nossos leitores uma proveitosa e prazerosa leitura.

Gildo Magalhães - Editor

 Leia na íntegra: https://www.revistas.usp.br/khronos/issue/view/12531/2326

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