Apresentamos os textos que integram o número 12 da revista Khronos, do Centro de História da Ciência, da Universidade de São Paulo.

O desenvolvimento científico-tecnológico da Rússia tzarista, que apesar o de ser considerada uma nação periférica dentro da Europa, sobressaiu em muitas áreas fundamentais, como a matemática, física, química e as ciências da vida. Essa tradição prosseguiu após 1917 com o governo soviético, em meio às dificuldades políticas e econômicas do novo regime, uma história pouco conhecida entre nós. É oportuno que esta edição se inicie com um texto de Maria Rita Guercio, que recapitula os principais eventos da contribuição pioneira de Konstantin Tsiolkovsky sobre a propulsão de foguetes e a criação da indústria aeroespacial, parte essencial de uma manifestação chamada de “cosmismo” russo, engajada no progresso científico e tecnológico da humanidade. Suas ideias sobre colonização humana do espaço extraterrestre repercutiram em outros autores soviéticos, como Vladimir Vernadsky, já apresentado anteriormente na Khronos, e frutificaram em plena Guerra Fria com o sucesso russo dos primeiros satélites e o início da era das viagens espaciais tripuladas.

Nossa época atual de atendimentos médicos a toque de caixa, em que os profissionais de saúde por vezes sequer olham para o paciente, limitando-se a solicitar exames laboratoriais, deixou de lado uma qualidade exaltada já na Antiguidade no corpo hipocrático, ou seja, o da empatia entre médico e doen- te, fator psicológico bastante relevante para a cura. O texto de Samira Mansur e Nikoly Vicente propõe uma abordagem interdisciplinar da questão, a partir de uma releitura do escritor português José Saramago, cujo Ensaio sobre a Cegueira foi submetido pelas autoras a técnicas de análise de discurso. Como resultado, há uma defesa de procedimentos cuja observação poderia ser discutida em temas da história da medicina, a exemplo do que fez o historiador Roy Porter em seu livro Das tripas coração.

Uma modernização brasileira mais efetiva é notada a partir da década de 1920, com a reivindicação de uma industrialização maior do país e da valorização dos recursos naturais nacionais, não mais em termos de um país relegado a mero fornecedor de matéria-prima e produtos agrários, mas de uso de suas vantagens em prol de uma independência econômica. Neste sentido, faz-se necessário revisitar a obra do escritor e ativista cultural Monteiro Lobato, como empreende Cristiano Pereira, aproximando-a de outro personagem histórico ainda não suficientemente estudado, o engenheiro Pandiá Calógeras. A análise acurada do estado da siderurgia brasileira por parte de Lobato, que apesar de não ter educação técnica, levou-o a pregar a superioridade do método Smith de alto-forno como o mais adequado às condições do país, do ponto de vista financeiro e técnico.

A história da geologia costuma se deter na incipiente formalização acadêmica desta ciência, como vai ocorrer entre os séculos XIX e XX, especialmente com os trabalhos de Hutton e Lyell na Grã-Bretanha. A formação do pensamento moderno da geologia está, porém, mais recuada, como se pode notar na obra do filósofo Descartes. Suas ideias foram a base para a “teoria sacra da Terra” empreendida por Thomas Burnet no século XVII, como mostra Alexandre Henrique dos Santos. Influenciado pela cultura do barroco e pelas expectativas religiosas, políticas e cosmológicas de cunho milenarista, Burnet se propõe explicar as mudanças sofridas pelo planeta no passado, extrapolando para o futuro, dentro de uma visão cíclica do tempo.

Organizações não-governamentais e outros grupos têm demonizado a agricultura industrializada, confrontando-a com o colapso ambiental e a autodeterminação de povos autóctones. A devastação do meio e o uso indiscriminado de agrotóxicos certamente causam malefícios se não forem tomados cui-dados básicos por parte de governos e empresas. Gabriela Maria Trivellato e Luciana Maria Leme se apoiam em estudos antropológicos para reivindicar novas práticas nessa área, e acabam por apontar que, mesmo dentro do modo de produção capitalista, a melhor alternativa pode não ser o ataque indiscriminado à agricultura industrializada, mas um diálogo, que passa pela demonstração de que a destruição de ecossistemas não é lucrativa.

Uma dificuldade, que não é exclusiva da história da ciência, é a escrita biográfica. Problema enfrentado desde as Vidas de Plutarco, os biógrafos frequentemente retratam seus biografados de forma bastante idealizada, por vezes excessivamente laudatória e gloriosa, mitificando a figura descrita, frequente-mente ignorando as ideologias que historicamente elevaram ao panteão seus “heróis”. Dificilmente há um equilíbrio entre os méritos justos e os erros, ignorando-se as críticas contemporâneas ou da posteridade, e as controvérsias que restaurariam o caráter profundamente humano dos feitos atribuídos à personalidade descrita. Francisco Assis de Queiroz e Francisco Rômulo Ferreira apresentam uma visão de um cientista muito famoso, Charles Darwin, e no caso da biografia de cientistas, cuja vida e obra se confundem com a visão que a sociedade possui da própria ciência como uma história linear e progressiva.

Havíamos conclamado a comunidade de historiadores a apresentar artigos para este número sobre a ciência e a técnica colonial brasileira. Houve uma contribuição em resposta, e estamos certos de que ainda há muito a ser descoberto e discutido a respeito desse período. Amanda Peruchi nos traz um texto inédito do médico português Manoel Joaquim Henriques de Paiva, que entre os séculos XVIII e XIX defendeu a vacinação contra a varíola de forma pioneira no Brasil e em Portugal, doença de alta incidência local. Aproveitamos uma ilustração dessa fonte para ilustrar a capa desta edição da Khronos. Isto se deve, ademais, a ser o tratado aqui transcrito uma obra de cunho pedagógico, visando explicar ao povo a doença e como preveni-la.

Esse cuidado educativo se reveste de maior valor no momento delicado e ainda catastrófico causado pela pandemia da Covid-19, ocasião em que res​​​surgiu um forte movimento antivacinas, fenômeno de alcance mundial e tema para futuros estudos de história da ciência. De fato, como conciliar o tremendo avanço tecnocientífico de países como a França, com os discursos de um médico francês tão reconhecido internacionalmente como Luc Montagnier, agraciado pelo prêmio Nobel pelo isolamento do vírus do HIV? Essa discussão necessita ir além dos rótulos de “negacionismo”, que afinal não explicam o fenômeno e servem mais para marcar posições políticas do que para discussões de teor científico. Seria o caso de ensinarmos mais ciência para a população, o que em princípio é sempre bom e valioso, mas também de desmistificar a ciência ensinada, mostrando como a ciência se beneficia de controvérsias, porque os seres humanos vivem contraditoriamente e o processo de convencimento científico é lento, difícil e dialético, como sabem os historiadores da ciência.

O chamado “mecanismo de Anticítera” tem sido dos objetos mais estudados envolvendo uma complexidade tal que demonstra a sofisticação da ciência e da técnica na Antiguidade. Sua descoberta num navio naufragado no começo do século XX levou à sua datação preliminar no século I a.C., essa data tem recuado para em torno do final do século III e início do século II a.C., mais perto da época de Arquimedes, um possível candidato a fabricante original do engenho. Um especialista em ciência grega dessa época é o historia- dor argentino Christián Carman, cujas conclusões, que encerram este número, discute qual teria sido o ano possível a partir da posição de um dos ponteiros remanescentes daquele artefato, um verdadeiro computador analógico de bordo. A tradução de seu artigo foi feita por Beatriz Bandeira.

Na expectativa de uma melhora substancial no enfrentamento da pandemia, que se revelou ser um fator limitante para o prosseguimento de muitas pesquisas nesse período desde o início de 2020, esperamos que os leitores encontrem nesta edição artigos de interesse para um conhecimento da história das ciências e técnicas.

Gildo Magalhães- Editor.

Leia na íntegra: https://www.revistas.usp.br/khronos/issue/view/12274/2237

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